Um dos melhores exemplos da engenhosidade dos antigos egípcios é a
mumificação, que ilustra o conhecimento profundo que tinham de inúmeras
ciências, como a física, a química, a medicina e a cirurgia. Esse conhecimento
era resultado do acúmulo de uma longa experiência. Por exemplo, à descoberta
das propriedades químicas do natrão – encontrado em certas regiões do Egito, em
particular no Uadi El-Natrum – seguiu-se a utilização das mesmas no cumprimento
prático das exigências da crença na vida além-túmulo. Preservar o corpo humano
era uma forma de dar realidade à crença. Análises recentes revelaram que o
natrão se compõe de uma mistura de carbonato de sódio, bicarbonato de sódio,
sal e sulfato de sódio. Os antigos egípcios conheciam portanto, as funções
químicas dessas substâncias. No processo de mumificação, o corpo era embebido
em natrão durante setenta dias. O cérebro era extraído pelas narinas, e os
intestinos removidos através de uma incisão num dos lados do corpo. Operações
desse tipo exigiam um acurado conhecimento de anatomia, queé e ilustrado pelo
bom estado de conservação das múmias.
A Cirurgia
Foram sem dúvida os conhecimentos adquiridos com a prática da
mumificação que permitiram aos egípcios o desenvolvimento de técnicas
cirúrgicas desde os primeiros tempos de sua história. A cirurgia egípcia é, com
efeito, bastante conhecida graças ao Papiro Smith, cópia de um original escrito
durante o Antigo Império, entre – 2600 e – 2400, um verdadeiro tratado sobre
cirurgia dos ossos e patologia externa. Quarenta e oito casos são examinados
sistematicamente. Em cada um deles, o autor do tratado começa o estudo com um
título geral: “Instruções acerca de {tal e tal caso}”. Segue-se então uma
descrição clínica: “Se observares [tais
sintomas]”. As descrições são invariavelmente precisas e incisivas, seguidas de
um diagnostico: “Em relação a isso, dirás: um caso de [tal e tal lesão]”, e,
dependendo do caso, “um caso que poderei tratar” ou “um caso que não tem
remédio”. Se o cirurgião pode tratar o paciente,o tratamento a ser administrado
é então explicado em detalhes; por exemplo:
“no primeiro dia, deves usar um pedaço de carne como bandagem; depois,
deves colocar duas tiras de tecido de modo a juntar os lábios da ferida...”
Ainda hoje são aplicados vários tratamentos indicados no Papiro Smith.
Os cirurgiões egípcios sabiam suturar ferimentos e curar fraturas
empregando talas de madeira ou de cartonagem. Algumas vezes, o cirurgião
simplesmente recomendava que se permitisse à natureza seguir os seu próprio
curso. Em dois exemplos, o Papiro Smith instrui o paciente a manter sua dieta
normal.
Dos casos estudados pelo Papiro Smith, a maioria se refere a
lacerações superficiais do crânio ou da face. Há também casos de lesão dos
ossos ou das juntas, como contusões das vértebras cervicais ou espinhais,
luxações, perfurações do crânio ou do esterno, e diversas fraturas que afetam o
nariz, o maxilar, a clavícula, o úmero, as costelas, o crânio e as vértebras.
Exames nas múmias revelaram vestígios de cirurgia, como é o caso do maxilar
(datado do Antigo Império) em que foram praticados dois orifícios para drenar
um abscesso, ou do crânio fraturado por golpe de machado ou espada e recomposto
com sucesso. Existem também indícios de tratamentos dentários, como obturações
feitas com um cimento mineral; há uma múmia que apresenta uma espécie de ponte
feita de ouro ligando dois dentes pouco firmes.
Por sua abordagem metódica, o Papiro Smith serve como testemunho da habilidade dos cirurgiões do antigo Egito,
habilidade que, supõe-se, foi transmitida pouco a pouco à África, à Ásia e à
Antiguidade clássica pelos médicos que acompanhavam as expedições egípcias aos
países estrangeiros.
Além disso, sabe-se que soberanos estrangeiros, como o príncipe
asiático de Baktan, Báctria, ou o próprio Cambises, mandavam chamar médicos
egípcios, e que Hipócrates “tinha acesso à biblioteca do templo de Imhotep em
Mênfis”. Posteriormente outros médicos gregos seguiram-lhe o exemplo.
MOKHTAR, G
(Org). História Geral da África. Vol. II: A África Antiga, São Paulo: Ed.
Ática/Unesco, 1983.