A tentativa de implantação
da cultura européia em extenso território, dotado de condições milenares, é,
nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em
conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas
instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas
vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrado0s em nossa terra.
Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos
novos e imprevistos, elevarem à perfeição o tipo de civilização que
representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa
preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e
de outra paisagem.
Assim antes de perguntar até
que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde
temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e idéias de
que somos herdeiros.
É significativa, em primeiro
lugar, a circunstância de termos recebido a herança através de uma nação
ibérica. A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos (e em
certo sentido também a Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a
Europa se comunica com os outros mundos. Assim eles constituem uma zona
fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo
que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário.
Foi a partir da época dos
grandes descobrimentos marítimos que os dois países entraram mais decididamente
no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus
destinos, determinando muitos aspectos peculiares de sua história e de sua
formação espiritual. Surgiu, assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria,
em alguns sentidos, quase à margem das congêneres européias, e sem delas
receber qualquer incitamento, que já não trouxesse germe.
Quais os fundamentos em que
assentam de preferência as formas de vida social nessa região indecisa entre a
Europa e a África, que se estende dos Pirineus a Gibraltar? Como explicar
muitas daquelas formas, sem recorrer a indicações mais ou menos vagas e que
jamais nos conduziriam a uma estrita objetividade?
Precisamente a comparação
entre elas e as da Europa de além Pirineus, faz ressaltar uma característica
bem peculiar à gente da Península Ibérica, uma característica que ela está
longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade, com qualquer de seus
vizinhos do continente. É que nenhum desses vizinhos soube desenvolver a tal
extremo essa cultura da personalidade, que parece constituir o traço mais
decisivo na evolução da gente hispânica, desde tempos imemoriais. Pode
dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos
semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua
originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se,
antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não
necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual filho de si mesmo, de seu
esforço próprio, de suas virtudes e as virtudes soberanas para essa mentalidade
são tão imperativas, que chegam por
vezes a marcar o porte pessoal e até a fisionomia dos homens.
Sua manifestação mais
completa já tinha sido expressa no estoicismo que, com pouca corrupção, tem
sido a filosofia nacional dos espanhóis desde o tempo de Sêneca. Essa concepção
espelha-se fielmente em uma palavra bem hispânica “sobranceria” palavra que
indica inicialmente a idéia de superação. Mas a luta emulação que ela implica
eram tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas,
recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelos governos.
É dela que resulta
largamente a singular tibieza das formas de organização, de todas as
associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra
onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma
força exterior respeitável e temida.
Os privilégios hereditários,
que, a bem dizer, jamais tiveram influência muito decisiva nos países de
estirpe ibérica, pelo menos tão decisiva e intensa como nas terras onde criou
fundas raízes o feudalismo, não precisaram ser abolidos neles para que se
firmasse o princípio das competições individuais. À frouxidão da estrutura
social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais
singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o
Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a
cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes. As
iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no
sentido de separar os homens, não de uni-los. Os decretos dos governos nasceram
em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se refrearem as interesses
particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem
permanentemente as forças ativas.
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HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969.