Há muitíssimos séculos, o
Camboja era um deserto de areia e de rochedos; não se via o mínimo traço da
mais pequena gota de água, não se ouvia
o leve rumor do mais pequeno riacho. Por
todo o lado, enormes montanhas, semelhantes a feras acocoradas, eram calcinadas
por um sol ardente. Por vezes, ventos terríveis varriam a terra e engolfavam-se
pelas estreitas passagens abertas entre as montanhas, erguendo tornados de
poeira. As falésias, pouco a pouco escavadas por estes turbilhões rugidores,
abriam-se em cavernas, que imediatamente se enchiam de areia. A própria areia
modelava as montanhas, dando-lhes a forma de um leão rugidor ou de uma rã
prestes a saltar, esculpia as agulhas entre as quais brincava a luz.
A natureza parecia
artificial, demasiado estranha para ser verdadeira. Um dia, dois olhos secos de
lágrimas, cobertos por longas pesanas, vagos e desprovidos de sensibilidade,
dois olhos que podiam ser os de um cadáver, contemplaram esta paisagem
aterradora. Tinham seguido uma pista sem fim, tinham visto inúmeras paisagens,
do mar à neve, mas jamais tinham contemplado uma natureza como aquela. Talvez
fossem os olhos de um ser humano, talvez os de uma alma sem corpo. Por fim,
pela primeira vez desde que abandonara o seu país natal, um sorriso apareceu nos seus lábios finos e descoloridos. Kambu Svayambhuva tinha
finalmente chegado ao termo da sua peregrinação, à terra onde desejava morrer; a vida era-lhe demasiado pesada desde que perdera Mera, a
mulher que Shiva, a terceira pessoa da Trindade hindu, lhe tinha dado.
Kambu chegou a um vale
dominado por rochedos de formas fantásticas e viu m estreito trilho que conduzia
a um buraco aberto numa falésia. Entrou numa gruta escura, cujas paredes
estavam cobertas de humidade. O sol, a despeito de todo o seu poder, não
chegava até ali. Olhou em torno. Estalactites e estalagmites formavam colunas
polidas. Acendeu um archote, avançou pela caverna e não tardou em chegar junto
de um lago subterrâneo. Deslizou por uma estreita passagem, depois visitou um
caos de pedras enormes, por entre as quais murmuravam riachos subterrâneos. A
vida, no entanto, não estava ausente dali. Kambu distinguiu incontáveis
serpentes, cujos olhos o fixavam. O príncipe era corajoso. Em vez de fugir,
puxou da espada e avançou, de arma na mão, para a maior das serpentes, quando
esta, para seu grande assombro, se pôs a falar;
---- Quem és tu estrangeiro,
que ousas penetrar nas cavernas dos Nagas, os senhores deste País?
---- Sou Kambu Svayambhuva, rei dos Arya-Desha. A
minha esposa chamava-se Mera, a mais bela de todas as mulheres. O próprio deus
Shiva tinha-me dado. Deixou este mundo, e eu abandonei a minha pátria para
morrer no deserto mais selvagem que pudesse encontrar. Acabo de encontra-lo.
Agora, podes matar-me.
Esperou a morte com calma,
mas, em vez de esmaga-lo entre os seus anéis, a serpente falou novamente:
---- Não conheço o eu nome,
estrangeiro, mas falaste de Shiva. Shiva é o meu rei, e eu sou o rei dos Nagas, as serpentes gigantes.
Pareces-me corajoso. Fica conosco, neste país que escolheste, e põe fim ao teu
desgosto.
Kambu ficou, vivendo numa
das grutas, e acabou por amar os Nagas, que eram gênios, amavam os homens e adotavam por
vezes a forma humana. Fizeram-se amigos e, a troco da alimentação e
hospitalidade que lhe davam, Kambu pôs-se a falar-lhes das belezas do seu país.
Descreveu-lhe os vales risonhos onde homens e animais viviam em amizade, onde
cresciam o arroz e o algodão, as magníficas cidades atarefadas e felizes, as
colinas cobertas de vegetação, o mistério das florestas.
Passaram-se
vários anos. Kambu tinha esquecido a sua primeira mulher; desposara a filha do
rei dos Nagas. As
serpentes desapareceram, depois de terem graças aos seus poderes mágicos,
transformado o seu país numa região tão bela como a dos Arya-Desha. O
rei pronunciou umas palavras mágicas e gotas de água começaram a cair sobre as
rochas. Foi então que Shiva em pessoa se manifestou e exprimiu a sua
satisfação. A água tinha aparecido, ia fertilizar e transformar o país. Com a
água, manifestou-se a vida, e depois o todo da criação. Kambu estava contente e
maravilhado. Dele
e dos Nagas ia descender uma nova raça de homens, a que fundaria o reino do
Camboja, o reino dos filhos de Kambu.
Através dessa lenda,
distinguem-se a origem do povo Khmer, fundadores de Angkor vindo da Índia
provavelmente nos primórdios da era cristã, e que teve pouco depois, de lutar
contra invasores vindos provavelmente de Java, em duas vagas. Uma delas constitui o núcleo
da raça dos
Chams, futuros inimigos hereditários do Khmers, e a outra
estabeleceu-se em torno do delta do Mekong. Assim nasceu o reino do Fun-Nan, ou reino da Montanha,
que alcançou um alto grau de poder sob várias dinastias. No fim do século V da
nossa era, o Camboja atual encontrava-se constituído e unido sob o cetro
de um príncipe da família real do Fu-Nan, Bhavarman. Todavia, só depois de violentas
lutas, tanto contra os Chams como contra os javaneses, Jayavarman II pôde
instalar a realeza Khmer na região de Angkor. Um de seus sucessores,
Jayavarman IV,
iria fundar a cidade de Angkor, onde os reis permaneceriam durante
vários séculos.
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ULRICH,
Paul. Os enigmas das civilizações desaparecidas. Rio de Janeiro: Otto Pierre
Editores, 1978.
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